A utilização de determinados símbolos e cores como forma
de identificar indivíduos, famílias, tribos ou clãs é um fenómeno universal e com raízes remotíssimas.
É impossível determinar com rigor quando teve início a prática de empregar símbolos como marcas de posse; ainda
antes do seu aparecimento nos escudos, encontram-se emblemas proto-heráldicos em selos (de cera ou chumbo) e sinetes. A Heráldica é um
aspecto particular desta tendência humana, que se tornou, na Idade Média europeia, num sistema com regras precisas e aplicação
generalizada.
Não existe uniformidade de opiniões entre os historiadores sobre o momento
em que se pode situar o nascimento da Heráldica. Durante muito tempo foi corrente relacionar-se o início do uso de emblemas de natureza
heráldica no Ocidente com as Cruzadas, devido ao contacto com a cultura oriental. É um facto que a heráldica tem semelhanças
com a simbologia árabe; por outro lado, os Cruzados empregavam a cruz, sob diversas formas, como forma de se reconhecerem, e a cruz é
uma das peças heráldicas mais antigas; mas, para além de uma coincidência cronológica, não está provado
que tenha sido com as Cruzadas que o mundo medieval adoptou o sistema de identificação pessoal que se veio a tornar na Heráldica.
Inclusivamente, os primeiros Cruzados já levavam consigo escudos pintados e emblemas heráldicos...
Cruzado inglês, século XIII. De notar as cruzes usadas no pendão e no trajo.
Foi com a ajuda de cruzados do norte da Europa que D. Afonso Henriques
tomou Lisboa aos Mouros em 1147
Uma teoria recente (de meados do século XX...) faz recuar as origens
da Heráldica para a invasão árabe de 711. A comprovar-se, então a Heráldica teria nascido na Península Ibérica,
o que explicaria a simplicidade e pureza heráldica de alguns dos brasões de armas mais antigos da Península (como, por exemplo,
os escudos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, e o escudo presumível de D. Afonso Henriques, as primeiras armas de Portugal).
Seja como for, parece indiscutível que o uso organizado e codificado
de símbolos heráldicos apenas se verificou a partir do século XII, como resultado da evolução de símbolos e marcas
de posse muito mais antigas.
Mas a Heráldica não se pode dissociar dos cavaleiros medievais
e, particularmente, da guerra e dos torneios.
Cavaleiro medieval, século XIV, com o
escudo dos Joanes (de Domingos Joanes)
O uso de armaduras completas e, muito particularmente, dos elmos
que cobriam completamente o rosto tornou necessário um sistema de identificação claro e facilmente visível de longe.
Um cavaleiro medieval dentro da sua armadura era virtualmente impossível de distinguir, no calor de uma batalha ou desde a bancada de um torneio,
de qualquer outro com uma armadura semelhante; os reis e chefes militares eram difíceis de identificar e seguir; durante um combate, amigos
e inimigos confundiam-se. Estes factores levaram, desde meados do século XII, ao uso de emblemas pessoais pintados nos escudos e elmos e, por vezes,
nas roupas do cavaleiro ou na cobertura da montada.
Iluminura quatrocentista representando a Batalha de Aljubarrota.
Mais do que uma representação fidedigna do histórico combate,
esta iluminura revela bem a confusão que se podia gerar durante
uma batalha medieval e a vantagem de os combatentes exibirem
emblemas heráldicos bem visíveis.
Nos torneios, os elmos eram, quase sempre, encimados por uma figura em relevo (frequentemente
uma peça do escudo), o timbre, que mais facilitava a identificação dos contendores.
O Rei de Portugal, vestido para um torneio com as armas reais (c. 1433)
O uso de escudos pintados com símbolos pessoais generaliza-se rapidamente,
e é adoptado por toda a classe guerreira e, de uma forma geral, por toda a aristocracia (e mesmo por alguns municípios e corporações,
que transpõem para selos os emblemas proto-heráldicos das bandeiras que empunhavam nas batalhas). Nesta fase, as armas de um cavaleiro
representam-no a ele, individualmente, e, em certos casos, as terras que este possui e os seus laços de vassalagem. Não são,
verdadeiramente, armas de família, nem se transmitem de pais para filhos. Cada novo cavaleiro assume as suas armas em função
de diversos factores, como a linhagem, o território, as relações familiares ou os compromissos feudais. Por vezes, até, um cavaleiro
não usava sempre os mesmos emblemas pintados nos seus escudos ou paveses de combate.
Para evitar duplicações e confusões, os emblemas e cores
do escudo são rigidamente codificados. O monarca chama a si o poder de conceder brasões de armas, como forma de recompensar os serviços
dos seus cavaleiros, acompanhando normalmente a doação de senhorios ou terras; os arautos-de-armas, funcionários régios
encarregues de coordenar o uso de emblemas heráldicos, criam regras de concepção de brasões com vista à sua fácil
visualização e identificação. Daí o uso de cores contrastadas e de figuras simples, características
da heráldica mais antiga.
Este sistema de identificação pessoal torna-se, a partir
do século XII, hereditário e passa a representar uma família ou linhagem. Desde o século XIII, regista-se o uso
de brasões de armas por parte de mulheres, o que comprova que os mesmos eram já verdadeiros emblemas pessoais, e não uma simples
transposição das armas de combate dos cavaleiros. Tinha nascido a Heráldica.